Vida artificial26.03.15
Cientistas americanos inauguram a era da biologia sintética, em que bactérias projetadas em computador resolverão – ou criarão – os maiores problemas da humanidade
por Salvador Nogueira e Bruno Garattoni
A maior descoberta da humanidade desde o fogo. A invenção mais importante (e mais controversa) desde a criação da bomba atômica. O início de uma nova era de prosperidade, saúde e desenvolvimento tecnológico para o homem – ou o começo de sua destruição. Foi assim que jornalistas, cientistas, filósofos e acadêmicos em geral receberam a proeza anunciada pelo geneticista Craig Venter: a criação em laboratório de uma forma de vida sintética. “Ficou provado que o mundo material pode ser manipulado para produzir o que chamamos de vida”, diz Arthur Caplan, professor de bioética da Universidade da Pensilvânia. Até o Vaticano, mesmo fazendo as ressalvas de praxe, elogiou a pesquisa.
À primeira vista, essa forma de vida sintética não impressiona muito. Ela é só uma versão artificial da Mycoplasma mycoides – bactéria que causa doenças em bois e é conhecida desde o século 19. No laboratório, não faz muito mais que se alimentar e se multiplicar. Come como mycoides, vive como mycoides, morre como mycoides, se reproduz como mycoides. Bem, ela é uma mycoides. Qual é a grande novidade, afinal? A novidade é que essa humilde bactéria é o primeiro organismo vivo na face da Terra a funcionar com um genoma produzido artificialmente. Ou seja: o DNA que existe dentro dela foi construído em laboratório, com base num arquivo digital. “É a primeira forma de vida cujos pais são um computador”, disse Craig Venter na entrevista em que apresentou a bactéria ao mundo.
Para gerar essa forma de vida, o DNA sintético teve de ser introduzido numa bactéria que já estava viva – cujo código genético foi substituído pelo genoma artificial. Ninguém conseguiu, ainda, gerar vida a partir de matéria inanimada. Mas a descoberta provou que é possível escrever DNA como se fosse um software, colocá-lo para rodar no hardware da vida (a célula), e disso obter uma nova forma de vida – que foi criada em laboratório e contém elementos definidos pelo homem. Vida artificial. Ou, se você preferir, vida sintética. Ela é filha de computadores. Mas também de um homem.
O Criador
Craig Venter. Genial e polêmico, esse pesquisador americano começou a se destacar nos anos 90, quando inventou um método mais rápido e barato para ler DNA. Então ele decidiu, por conta própria, sequenciar (ler) todo o genoma humano – código enorme, com 3,2 bilhões de letrinhas, que um consórcio internacional de cientistas já estava decifrando havia praticamente uma década. Mesmo saindo com todo esse atraso, Venter empatou com o outro grupo: finalizou a tarefa na mesma época, e gastando 90% a menos. Sua grande sacada foi descobrir que o DNA podia ser quebrado em pedaços e lido em ordem aleatória, o que agilizava o processo. Ele queria cobrar pelo acesso aos dados do DNA humano, o que gerou enorme polêmica na época. O sequenciamento do genoma deu um empurrão crucial à medicina e criou uma indústria de testes (pagando US$ 300, você pode ter seu DNA analisado em busca de predisposição a certas doenças), mas a ideia de Venter não decolou – como o outro grupo de cientistas liberou gratuitamente os dados, ele não teve escolha a não ser fazer o mesmo (não pôde vendê-los).
Mais ou menos nessa época, decidiu apostar em outro ramo: a biologia sintética. Mas, para isso, era preciso produzir um genoma. Em vez de partir do zero, o grupo de Venter decidiu copiar a sequência genética de uma criatura que já existisse na natureza: uma bactéria chamada Mycoplasma genitalium (que, como seu nome sugere, causa infecções genitais). Ela não é nada glamorosa, mas foi escolhida porque tinha o menor genoma conhecido na época, com “apenas” 500 mil letras. O DNA dessa bactéria foi escaneado. E, em janeiro de 2008, a equipe conseguiu montar uma versão sintética dele, manipulando adenina, guanina, timina e citosina – as 4 substâncias químicas que formam o genoma de todos os seres vivos (e cuja versão artificial é produzida por empresas de biologia molecular).
Agora que tinham produzido DNA artificial, os cientistas precisavam resolver a outra parte do desafio: transformá-lo numa criatura viva. Como até hoje ninguém descobriu como gerar vida a partir de matéria inanimada, a solução foi implantar o DNA artificial numa bactéria “hospedeira”, cujo genoma seria suprimido. No começo, não funcionou. A equipe de Venter tentou, tentou e tentou, por mais de um ano, mas o implante nunca dava certo. O processo de fabricação do DNA gerava erros no código genético, que impediam a bactéria de funcionar. Ela simplesmente morria. Venter percebeu que o que supostamente era uma vantagem (a simplicidade genética da M. genitalium) na verdade era um problema – e que uma bactéria maior, com genoma mais extenso, seria menos suscetível aos inevitáveis erros na síntese do DNA. A equipe recomeçou todo o processo, só que com a Mycoplasma mycoides, de genoma maior (1 milhão de letras). Deu certo.
Eles produziram uma versão artificial do DNA da mycoides, implantaram em outra bactéria, e bingo: ela se transformou em mycoides e começou a se reproduzir, gerando descendentes com 100% de DNA artificial. Os cientistas se deram ao luxo, inclusive, de fazer algumas alterações no código genético. Inseriram 4 mil letras no genoma, escrevendo nele – de forma codificada, usando pedaços de adenina, guanina, timina e citosina – uma série de mensagens. Uma passagem do romance Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce (“Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida a partir da vida”). Um trecho do livro American Prometheus, que fala sobre a criação da bomba atômica pelo físico J. Robert Oppenheimer (“Não veja as coisas como elas são, e sim como elas poderão ser”). E uma frase atribuída ao físico Richard Feynman, outro dos inventores da bomba: “O que não posso criar, não posso compreender”. A fixação de Craig Venter com a bomba atômica não é coincidência. O mundo nunca mais foi o mesmo depois que o homem aprendeu a separar e fundir o átomo. E a biologia artificial promete uma transformação ainda mais profunda.
A nova vida
Por enquanto, a vida sintética é apenas uma demonstração de laboratório. Ela só será realmente útil quando os cientistas conseguirem mexer mais profundamente no DNA artificial. Se quisermos criar bactérias capazes de desempenhar funções úteis, como produzir combustíveis e curar doenças (leia no quadro ao lado), precisaremos dar a elas os meios de fazer isso: os genes. Alguns dos genes necessários já existem na natureza – há micro-organismos capazes de comer plástico e fabricar hidrogênio, por exemplo. Esses genes poderiam ser turbinados e inseridos em criaturas com DNA artificial.
Falta muito para chegar a esse ponto. Mas poucos duvidam de que isso possa acontecer. “A ideia parece razoável”, avalia o geneticista Marcelo Nóbrega, na Universidade de Chicago. “As bactérias se tornariam minirrefinarias de combustível, uma fonte renovável e não poluente de energia.” É tão razoável, na verdade, que o Departamento de Energia dos EUA decidiu investir no instituto de Venter para que ele faça tudo isso acontecer o mais breve possível.
E não custa lembrar que Venter e sua equipe não são os únicos a trabalhar nisso. Um dos rivais mais fortes é o cientista David Berry, líder da empresa biotecnológica LS9, que está desenvolvendo micro-organismos capazes de fabricar um substituto do petróleo. Outro concorrente é a empresa italiana ProtoLife, que quer ir além do esforço de Venter e construir tudo na raça – quer dispensar a bactéria hospedeira e construir uma bolhinha artificial que sirva como embalagem para sua forma de vida sintética. Uma estratégia parecida foi adotada pelo físico Steen Rasmussen, do Laboratório Nacional de Los Alamos, nos EUA. Ele pretende partir de elementos básicos (como uma versão alternativa do DNA chamada PNA, mais ácidos graxos e moléculas sensíveis à luz) e então reuni-los, na esperança de que eles possam, sozinhos, iniciar um metabolismo primitivo. Em vez de fazer o caminho seguido por Venter, que é pegar células já vivas e programá-las com DNA artificial, a ideia aqui é começar de baixo, e fazer uma versão artificial da própria célula. É uma estratégia mais complicada – e mais ambiciosa. “Como estamos começando do zero”, diz Rasmussen, “podemos projetar nossa protocélula para fazer coisas que as células vivas não podem fazer. Poderíamos torná-la capaz de sobreviver em qualquer ambiente: tóxico, radioativo etc.” Segundo ele, essa técnica também é mais segura. “As protocélulas podem ser projetadas para não interagir com o ambiente.” Ou seja: em tese, elas poderiam conter mecanismos de segurança mais avançados (por exemplo, a incapacidade de sobreviver na ausência de um determinado gás que só exista em laborátorio), para garantir que não causassem danos se escapassem ao controle humano. Como medida de segurança, Venter propõe o chamado “genoma mínimo” – quer criar bactérias que possuam pouquíssimo DNA, com 400 genes ou menos, e que por isso sejam frágeis, incapazes de sobreviver fora de condições controladas.
Os micróbios artificiais seriam cultivados em laboratórios, fábricas e usinas construídas especialmente para isso (cuja viabilidade econômica, aliás, será um grande desafio para que essa tecnologia seja usada em larga escala). Mas, cedo ou tarde, é provável que acabem escapando. E as bactérias trocam de genes entre si com mais frequência do que crianças trocam figurinhas da Copa do Mundo. Mesmo que você crie um micróbio incapaz de sobreviver sem ajuda, ele pode acabar entrando em contato com uma bactéria natural, trocar genes com ela, e readquirir essa capacidade. E aí? Caos.
Imagine uma bactéria originalmente programada para biodegradar plástico que escape no mundo. Ou uma que comece a produzir hidrogênio (altamente inflamável) sobre as bocas de nossos fogões. E por aí vai. Não é difícil pensar em tragédias que têm como inspiração a vida sintética.”Ninguém pode estar certo das consequências de fazer novas formas de vida, e devemos esperar o inesperado e o indesejado”, argumenta o filósofo Mark Bedau, da Universidade Reed. O assunto está começando a mobilizar os pensadores do mundo, e já existe quem defenda um controle rígido da biologia sintética – que passaria a ser regulada por agências e tratados semelhantes aos que hoje tentam limitar a proliferação de armas nucleares. A genética está a dois passos de começar uma nova era. Se isso será bom ou ruim? Vamos ter de descobrir na prática.
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